sexta-feira, 23 de abril de 2010

Pelo buraco da fechadura: casamento sem sexo

“A coisa que menos se faz depois de casado é sexo”; “O homem engorda depois que casa porque come demais e faz sexo de menos”. Seriam tais frases expressão da verdade? Para alguns casais, sem sombra de dúvida. Na ficção e na realidade, os exemplos de casamentos nos quais as relações sexuais são esparsas (para não dizer ausentes), podem ser encontrados aos montes, de tal maneira que o raro é encontrar um casamento feliz. No terreno da ficção, ninguém melhor para ilustrar um casamento nessas condições do que o mestre que vê a vida dos casais pelo buraco da fechadura: Nelson Rodrigues.

Recorrerei à sua obra-prima, o livro “Asfalto selvagem”, originalmente um folhetim, no qual a história de Engraçadinha é contada. Imortalizada por Alessandra Negrini e Cláudia Raia na minissérie da Globo, a personagem principal vive um casamento com Zózimo, personagem construído de forma a ser o retrato perfeito do homem sem-sal. Convertida ao protestantismo, Engraçadinha em nada lembra a fogosa adolescente do passado. A situação do casal é tão crítica que não apenas o sexo foi abolido (por iniciativa dela, entenda-se bem), mas a própria nudez da esposa torna-se um mistério para o marido. Há algumas razões que explicam o desinteresse de Engraçadinha pelo sexo. Há o elemento traumático da adolescência, quando sua paixão pelo primo tem o trágico desfecho da automutilação e da morte de Silvio, após ambos descobrirem que são irmãos por parte de pai. Mas há também o fato do marido ser totalmente desinteressante (um sujeito que anda de camisa rubro-negra sem mangas não pode inspirar o tesão de ninguém) e pacífico demais, a tal ponto que não reage às cantadas explícitas que a esposa recebe.

Paralelamente, um dos personagens mais geniais da literatura brasileira, o juiz Odorico Quintela, nascido em Mimoso do Sul, vive um relacionamento também sem sexo. Mas a dinâmica de seu casamento é um contraponto à história principal. Às vésperas de suas bodas de prata, foi ele quem cortou as relações sexuais com a esposa, que ele descreve como uma “víbora de túmulo de faraó”. Odorico só se dá conta de que a abstinência já dura dois anos quando é interpelado pela esposa em um café-da-manhã. Na divertidíssima cena, ele afirma: “Depois de um certo tempo, o amor entre marido e mulher chega a ser incestuoso.”


O desinteresse do juiz pelo sexo aparentemente se explica pela total ausência de beleza da esposa, aliada à sua chatice. Sua falta de curvas lhe causa um “desgosto total” quando a mesma se despe e praticamente o obriga a manter relações sexuais. Mas, através deste personagem, Nelson Rodrigues também retrata os dramas masculinos trazidos pela idade: a impotência sexual. Aos 52 anos, Odorico mente a idade para todos, afirmando ter 48; quando se apaixona perdidamente por Engraçadinha, começa a fazer as contas para descobrir quantos anos de vida sexual lhe restam, traçando uma estratégia de vida saudável que inclui boa alimentação, boas noites de sono e ovomaltine; em uma das vezes em que consegue enrolar a esposa, ele pensa: “não posso me gastar com esposa, tenho que me guardar para Engraçadinha.” E, finalmente, ignorando totalmente o fato de que não é correspondido ao arquitetar um encontro em “um interior”, o juiz fica nervosíssimo quando consegue um apartamento para um dia e horário específicos, a tal ponto que chaga a berrar com Tinhorão: “Quem sabe o dia dos meus desejos sou eu!”



Se Odorico começa a se “sentir vivo” novamente quando reencontra Engraçadinha no Rio de Janeiro após longos anos, seu sentimento não encontra reciprocidade. Lindíssima e cheia de curvas, Engraçadinha não pode reencontrar o desejo em um coroa impotente de pernas “finas como bambus”. Mas Nelson Rodrigues não condena sua personagem ao destino de apenas inspirar desejo em homens e mulheres, reservando para ela um rapaz mais novo e “maciço” (o autor usa esse adjetivo com frequência para descrever homens fortes), que lhe dá carona em um dia de chuva por pura obra do acaso. Com ele, sim, Engraçadinha revive o frisson da atração física. Ao juiz Odorico, o máximo que ela pode oferecer é um beijinho na testa; a Zózimo, o máximo que ela pode oferecer é o vislumbre de sua nudez.










A minissérie da rede globo, lançada em DVD, imortalizou a personagem Engraçadinha e, ao lado das esquetes de "A vida como ela é", produzidas também pela emissora, virou referência para aqueles que enxergam Nelson Rodrigues apenas como pornográfico. ************************************************************************************
Da ficção para a realidade: casamento sem sexo existe. (Para as meninas que são amantes: aquele crápula pode estar falando a verdade quando diz que não transa com a esposa, mas isso não faz com que ele deixe de ser um crápula, ouviram?). Com pouco mais de dois meses de casada, minhas relações sexuais já são esparsas – por iniciativa minha. O desejo dele permanece inalterado e eu vivo sendo abordada. Mas o que mais me incomoda não é a falta de beleza nem os quilos a mais típicos de homem casado, e sim o fato de que ele não faz preliminares e me machuca. Assim, prefiro evitar as relações.

O que eu e juiz Odorico temos em comum:
às vezes o Lucas vem pegar em mim, apertar minha bunda, etc. Eu reajo mal, dizendo que é falta de respeito. É o amor entre marido e mulher se tornando incestuoso.


O que eu e Engraçadinha temos em comum: cada vez que eu rejeito o Lucas, logo em seguida me dou conta de que não tenho o direito de fazer isso, afinal, é meu marido, e só me aborda quando estamos sozinhos. A rigor, que ele faz não é falta de respeito.

O que eu terei em comum com os dois personagens:
reencontrarei a atração física algum dia na figura de alguém interessante?

Um comentário:

  1. Nossa! Fico doida pra devorar os livros do Nelson Rodrigues quando vc fala deles! Já passei em alguns Sebos e não encontrei nenhum! :(
    É trágico como nossas vidas se encaixam em algumas literaturas...e não sei se é ainda mais trágico quando nos incitam a acreditar que há esperança para os nossos "finais felizes"

    ResponderExcluir