domingo, 23 de agosto de 2009

Em cara de homem não se bate!

Havia entre os dois um contraste flagrante e até espetacular. Rosinha, cheia de corpo, de vitalidade, com uma exuberância de modos e de palavras quase inconvenientes; Arturzinho, de uma polidez, de uma cerimônia que só vendo. Foi talvez a própria força do contraste que os aproximou. [...]

Dois dias depois, combinaram um cinema na sessão das seis. Acontece, porém, que quando ia saindo do Itamaraty, foi chamado ao gabinete do chefe. Demorou-se lá e, quando, por fim, apareceu na porta do cinema, Rosinha o esperava já há quarenta minutos, debaixo de chuva. A pequena fez um escândalo:

- Você fez comigo um papel de moleque. [...] Quer ver como lhe meto a mão na cara, aqui, na frente dessa gente toda?

Lívido, balbuciou: - “Quero”. Então, diante dos curiosos, que acompanhavam o incidente, Rosinha deu-lhe uma bofetada, uma bofetada de estalo, como no teatro. Em seguida, deixou-o plantado à boca da bilheteria e afastou-se, precipitadamente.

Chegando em casa, ela conta o episódio de rua. O pai, que acabara de chegar, passa-lhe um pito:

- Isso não se faz, não está direito. Vou te dizer uma coisa, minha filha: - na cara de homem não se bate! (Nelson Rodriges. Humilhação de homem. In: "A coroa de orquídeas e outos contos e A vida como ela é...")


Nada mais teatral do que uma mulher que vira a mão na cara de um homem em público. Lendo o conto acima transcrito, lembrei-me de dois momentos nos quais tive essa atitude. Acho que também houve um terceiro, mas não me lembro bem.

Aos 17 anos, em plena Quinta da Boa Vista, dei um super tapa na cara do Luís, que nem meu namorado era. Nós saíamos de vez em quando, sem regularidade nenhuma e, aos 22 anos, ele era o maior mulherengo que o céu cobria. Eu, totalmente imbecil, saída de um relacionamento sem graça, era completamente apaixonada por ele. "Vamos namorar, Lúis? " , eu sugeria; "Tá maluca, Milena?", ele respondia. Até que um dia, a verdade é dita sem máscaras: " Milena, você sabe que só fico com você por ficar, não sinto nada por você." Vem a reação: dou um tapa estalado no rosto dele, que não reaje, não esbraveja nem fica violento. Claro que ele censurou minha postura, mas isso não o impediu de dizer na despedida: " se quiser sair de novo, me liga."

O segundo tapa, como não podia deixar de ser, foi na cara do Alan. Era uma noite como as outras, ele voltava do trabalho e ia passar na minha casa. Telefonou pra dizer que estava a caminho e pediu que eu o encontrasse na rua. Atendi o pedido e o encontri na praça. Ele, carinhosíssimo, veio logo me beijar, o que não era do seu feitio. Muito teatral, Alan sempre vinha me ver com uma cara de sofrimento de quem carrega o mundo nas costas. Lamentava-se horrores de sua vida e só depois relaxava. Mas, naquela noite, ele vinha feliz e empolgado, porque Helena estava esquematizando uma ida ao teatro e ele queria que eu fosse junto com o grupo. Mudei imediatamente de humor, pois sofria de uma ciúme justificadíssimo daquela pessoa. Subimos a rua juntos e eu disse: "não vou a teatro nenhum com essa mulher". Ele, rebateu: "se você não for, também não vou". Aparentemente, o assunto morreu, mas não a minha cólera. Já sentados na portaria do meu prédio, a pretexto não sei de que, vem minha reação, presenciada por duas pessoas que passavam pela rua: um sonoro tapa na cara dele. Ele levanta, sente dor, não sabe o que fazer. Diz que se viesse mais um tapa na sequencia, ele cairia. Arrependo-me instantaneamente. Ele diz que vai embora, eu o seguro, com toda a fragilidade de uma pessoa de 50 kg e ele, inexplicavelmente, não se desvencilha e se deixa ficar. Vinga-se de mim em seguida: " Quer saber, tive um caso com a Helena sim, agora terminei e ela fica atrás de mim cobrando, você inclusive já presenciou algumas cenas." Fico totalmente atordoada: "Mas como, se você sempre disse que fui sua primeira amante? Seu mentiroso desgraçado!" Ele, então, tenta consertar: "É mentira, só falei isso pra te fazer sofrer e me vingar do que você fez. Nunca tive caso nenhum com a Helena, olha bem pra mim e vê se tenho cara de ter um caso com a Helena!"

Já sem me importar muito com a verdade, vou com a Alan para a garagem. Começa uma briga, a pretexto de um dilema no trabalho. Ele começa a se expressar aos brados, que são ouvidos por todo o prédio. Triunfante, vira as costas e vai embora.

Subo e mal entro em casa, vem minha mãe brigar: "O que esse cara estava gritando? Na garage, ainda por cima! Já não falei que não quero vocês dois na garagem?" Explico partes da situação e falo do tapa. Tudo muda, e a raiva da minha mãe, que se pudesse faria Alan sumir da face da Terra, se transforma em uma leve simpatia. E a frase que ela me diz é a mesma dita pelo personagem de Nelson Rodrigues: "Milena, em cara de homem não se bate! Você tá louca? O cara já é todo problemático e você faz isso?" A culpa, que já me devorava, invade as profundezas do meu ser.
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Voltando ao texto de Nelson Rodrigues, eis a reação de Arturzinho após ser agredido na porta no cinema:

No dia seguinte, pela manhã, bate o telefone. Era Arturzinho. Antes de dizer “bom dia”, começa:
- Meu bem, estou telefonando para te pedir desculpas.
Era demais. Rosinha pula:
- Como pedir desculpas? Você apanha na cara e ainda pede desculpas?
Ele gagueja:
- Eu te fiz esperar, e...
Rosinha corta novamente: “Pelo amor de Deus, Arturzinho! Não me peça desculpas. Sou eu que vou te pedir, eu! Andei mal, mas você pode ficar certo de que nunca mais, ouviu?” Do outro lado da linha, o pobre-diabo insiste: - “Quer dizer que você não está mais zangada?” Rosinha perdeu a paciência:
- Quem deve estar zangado é você, e não eu!


Que reação se deve esperar de um homem que apanha na cara? No mínimo, que se chateie muitíssimo. Se a reação de Arturzinho causa surpresa e vai contra a ideia de que em cara de homem não se bate, eu garanto que a reação do Alan foi mais rodrigueana que a dos próprios personagens de Nelson.

Primeiro, Alan se surpreende e finge tentar ir embora; depois, faz uma revelação bombástica, para em seguida desmentir; a vingança parece pouca e, não se dando por satisfeito, grita pra dar vazão à raiva; por fim, tem uma saída teatral.

Mas, isso não é tudo. Na mesma noite, conversamos pela internet e eu não sabia o que fazer para ele me desculpar. Ele responde: "quem disse que tô chateado? pelo contrário, me senti mais teu depois daquele tapa." No encontro seguinte, ele vai além: "se dentro de três dias não tiver outro tapa daquele, tá tudo acabado entre a gente."

Até hoje, quando ele apronta das suas e depois reconhece a besteira que fez, ele pede: "anda, me dá um tapa, eu mereço porque te maltratei". Eu, naturalmente, me recuso. Quando está empolgado, pensando em sexo, ele diz: "quero apanhar de você, na cara."

Agora me digam, quem é mais rodrigueano? Os personagens Arturzinho e Rosinha, criados pelo próprio Nelson, ou duas figuras da vida real, Milena e Alan? Este é sem dúvida um dos casos em que a realidade parece mais ficcional que a própria ficção.

3 comentários:

  1. Realmente há um páreo duro aí pra escolher!
    É muita ficção...mesmo!
    Nunca pude/precisei dar um tapa desses...não sei o que seria preciso, a que ponto eu precisaria chegar...ou melhor, até sei, mas se depender desse caso, meu histórico de tapas fica aonde está.
    Já disse pro Arthur, se hoje eu encontrasse com ele e se minhas pernas não falhassem quando houvesse menos de 5 metros entre nós...a primeira coisa seria um tapa, por ter demorado tanto pra vir. Depois viria a teatralidade sequencial: tapa, lágrimas e beijos.
    Minha vida é tão seriado de TV que minha amiga que costumava ter um site super visitado de novelas(em forma de texto) pensava seriamente em pegar esse meu enredo pra escrever. Ninguém suspeitaria que aquilo tinha um fundo de verdade, disso eu tenho certeza.

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  2. Que interessante essa mistura de ficção e pura realidade! Adorei.

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  3. Falei cedo demais...hoje dei um tapa na cara de um homem. Hehe
    Foi de birra e por pura irritação, mas dei

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